O Homem Dissecado
Essa semana fui ver a exposição “Corpo Humano: real e fascinante” aqui no Rio de Janeiro. Atitude que somente fui refletir depois que me deparei com partes e corpos humanos espalhadas em várias seções em caixas de vidro num passeio bizarro que se estendeu por várias salas. Dito assim, o leitor pode imaginar que eu estava na cena de um crime. Mas posso dizer que foi mais ou menos assim que me senti. Causou-me certa aversão e constrangimento transitar por aqueles corpos uma vez que não conseguia esquecer que um dia, aquelas que hoje eram peças em exposição em um museu, foram pessoas iguais a mim e a você. Embora parecessem muito plásticos e assombrosamente trabalhados, aqueles homens e mulheres não foram um bloco de granito, uma peça de silicone ou o tronco de uma árvore antes de serem transformados no que foram por Roy Glover, “médico-artista” cujo o argumento para seu empreendimento se explica pelo “caráter prioritariamente educativo”. Embora tenha dito que todos os corpos são de “indivíduos ...que optaram por participar de um programa de doação de seus próprios corpos em benefício da ciência e da educação.” Tenho muitas dúvidas que alguém, sabendo, exatamente no iria se transformar seu corpo aceitasse se doar para tal exposição. Contudo, ao menos por suas obras, Dr. Glover, jamais será desmentido. Sem dúvida, o trabalho é impressionantemente meticuloso ao nos mostrar todas as cavidades e segredos que guardamos dentro de nós, mas saindo de lá, perguntei-me se eu realmente precisava saber de tudo isso. Tive a sensação de estar saindo de um curso intensivo de anatomia avançada. Estando lá, o que mais me chamou atenção foi a reação das pessoas diante do “espetáculo”. Pareciam estar felizes por finalmente se depararem com o bíceps braquial ou mesmo os ossos do metacarpo, agora revelados em detalhes minuciosos. Grupos de estudantes riam ao passar pelos corpos mais vistosos; pessoas expunham seus conhecimentos básicos sobre a fisiologia humana, enquanto outras olhavam para si procurando os músculos expostos nos cadáveres. Havia também as que explicavam a alguém as enfermidades que as acometia; enquanto uma mãe arrastava seu filho de 4 anos por todos os corredores a vislumbrar o inusitado panorama. Claramente incomodada, a criança virava o rosto diante de um quadro mais chocante, como quando nos deparamos com uma mesa repleta de pés e mãos seccionados. Nesse momento, ele exclamou: estou com vontade de vomitar. Foi também, a ânsia que me ocorreu. Outra coisa me chamou atenção: todos os corpos, que o doutor Roy Glover diz terem vindos da Republica Popular da China, têm próteses de olhos azuis. Corpos chineses de olhos azuis. Dr. Glover deve ter imaginado que seus corpos teriam mais dignidade se seus olhos tivessem o brilho azul de outros povos, porque, geneticamente falando é no mínimo absurda sua composição. Qual a grande lição que tirei da exposição? Finalmente posso dizer: o homem se tornou um objeto em sua plenitude. Destituído de sua condição humana, tornou-se peça de museu para a observação de outros homens. Os cadáveres do Dr. Glover não foram submetidos ao nenhum ritual fúnebre como as múmias do Egito Antigo, ou mesmo como as cabeças mumificadas pelos guerreiros Mundurucus no Peru. Foram simplesmente pensadas para se tornarem objeto de exposição. Pensando sobre isso, acho que afinal, prefiro me sentir como a criança arrastada pela mãe. Partilho com ela da repulsa diante de algumas invenções dos nossos dias nos quais parece muito comum que tudo seja esquadrinhado, publicizado e dissecado.
Sônia, Niterói 4 de outubro.
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