Micheal e a antropofagia midiática.
Eu assisti ao lançamento do clip Thriller, como de milhões de outras pessoas pelo mundo – logo depois ganhei o discão de vinil. Ainda me lembro daquele cheirinho quando a gente tirava o disco do encarte, daquelas fotos enormes e maravilhosas que eu gostava de passar horas olhando enquanto escutava as músicas.
Micheal Jackson morreu.
Pode parecer meio cruel, mas na verdade, para mim, aquele Micheal, que assiste quando criança, já havia morrido há muito tempo. Talvez para ele próprio, vai saber... mas não posso negar que quando cheguei em casa na quinta a noite depois de ter passado todo o dia sem qualquer contato com jornais, televisão ou internet tomei um baita susto - parece mentira que numa cidade como Rio de Janeiro, alguém possa passar um dia inteiro impune a isso, mas passei.
Fiquei diante do computador por alguns minutos olhando a tela com a manchete.
Esse episódio me deu a oportunidade para pensar sobre como eu própria sou atingida por essa grande e, por vezes devastadora máquina chamada mídia. Para ele, certamente, muito mais violenta do que para qualquer outra pessoa hoje. Não que tenha apenas sido uma vítima em tudo isso, embora, nos últimos anos sua figura se assemelhasse muito mais a um títere, das antigas tragédias gregas, do que propriamente a um “pop star”.
Lendo uma pequena parte das incontáveis narrativas que perscrutam os menores detalhes de sua existência, veio-me à mente o personagem Grenouille do escritor Alemão Patrick Süskind do livro O Perfume.
Grenouille, nascido no mais repulsivo dos lugares, um chão sujo, debaixo de uma banca de peixe, tinha o dom de extrair fragrância de qualquer matéria, porém, desgraçadamente, não exalava qualquer odor. Isso o tornava uma sombra, ao menos era assim que se sentia, dessa forma, queria de todas as maneiras ser outro. Descobrir o óleo essencial que o fizesse ser sempre amado, visto e festejado por todos. Ao seu redor uma sociedade tão digna de asco quanto o chão nojento onde havia nascido, procurava esconder seus odores fétidos através dos perfumes caros, para isso o adulavam. Grenouille era um sujeito doente, obcecado e solitário. Entretanto, mesmo em sua insanidade um dia compreendeu que nem mesmo a descoberta da perfeita fragrância lhe daria o que procurava, afinal, os perfumes são efêmeros; num último gesto Grenouille jogou sobre si, todo o conteúdo do precioso frasco que havia produzido e foi literalmente devorado em uma rua escura, suja e fria.
Finalmente Micheal foi devorado, penso que há muito ele já havia virado uma estranha criatura, parte homem, parte mídia que perdeu dentro de si, os limites entre sua individualidade e a publicização bizarra, pitoresca e espetacular que se tornou a sua vida. De certa forma, tristemente, sua existência talvez possa ser lida como uma espécie de metáfora de nosso tempo. A violenta exploração da imagem, a perda dos últimos limites entre a vida privada e o espaço público, a indústria ensandecida das cirurgias plásticas, os padrões nazistas de beleza e as promessas da juventude eterna. Parecemos estar anestesiados ou entorpecidos pelas fragrâncias de um mundo que valoriza cada vez o supérfluo, a aparência e a irreflexão do consumo; uma antropofagia irracional, indigesta que vem nos mergulhando em um processo predatório do próprio sentido de humanidade.
Estivesse Kafka vivo talvez seu personagem mais famoso a se metamorfosear fosse outro. Ao invés de contar a história do homem que virou inseto, contaria a surpreendente história do homem que virou notícia
Comentários
Na minha infância ele ainda estava no auge, lembro das crianças imitando os passinhos dele. E acho que ele ainda era negro.
Como pode uma pessoa mudar tanto? Eu acho que ele é a prova viva dos valores mutáveis, da efemeridade de tudo nessa nossa época, da importância da mídia, dos "avanços" da medicina.
Como se diz no Ceará, "o bichim"...
É a primeira vez que vejo seu blog e fiquei impressionado com as suas publicações. Simples, como um todo, mas escrito de forma elegante, com uma rica precisão vocabular. Me lembrou muito o meu autor favorito, Irvin D. Yalom, pois essas são exatamente algumas das características mais marcantes de seus livros.
Confesso que até me estimulou a, futuramente, montar um blog também. Já pensei várias vezes na possibilidade, pois escrever também é um dos meus hobby's, mas, hoje em dia, não tenho muito saco pra estruturar essas páginas do jeito que eu gosto. rs
Bom, está de parabéns! Serei um visitante freqüente rs.
Bjos