Rio de Janeiro - admirável velho mundo


Quantos mundos é possível caber em uma única cidade? Sempre me fazia essa pergunta enquanto estava morando no Rio de Janeiro. Ao olhar para os morros coloridos e multifacetários em suas milhares de pequenas casas, ao caminhar pela orla quase mítica da zona sul, percorrendo os subúrbios na complexidade de seus habitantes e costumes. Estando ali, por vezes me sentia só, sensação que, contraditoriamente, parecia partilhada coletivamente por tantas outras vidas em travessia que encontrei. Reunião de exilados a dividirem a experiência de ser o outro em terra alheia, vivendo na fronteira de vários sonhos. Reunião de memórias a confrontarem identidades, costumes e vivências.

Lá, Amazônia e São Luis, Paraíba, São Paulo e Recife, Ouro Preto e Mariana, Goiânia, Magé e Niterói e tantos outros lugares, tornaram-se familiares para mim quase como se fizessem também parte de minhas lembranças pelas memórias compartilhadas entre os que encontrei; como se estivéssemos reunindo o passado num ritual de revivescência no presente. “Reunião de nuvens”. Cidade memória.

Depois de algum tempo ela também para mim, tornou-se familiar. Uma familiaridade conflitante, porque talvez jamais possa senti-la sem uma leve sensação de estranhamento.

Viver no Rio de Janeiro é viver em um estado de paradoxo, algo entre o absoluto encantamento e torpor que a cidade produz pela força de seus espaços reais e simbólicos, pela história quase palpável de suas ruas, de seus prédios, e certa angústia de lamentá-la não mais bela, não mais limpa, não mais humana com os seus. Cidade indiferente, por vezes. 

Nem sei quanto vidas vi e vivi ali. Um espaço que diluiu para mim o próprio conceito de tempo. Cidade de um tempo curto, porém, sempre mais longo que a passagem dos dias e das horas. Espaço pequeno para a densidade de seus signos e pessoas. 

Cidade de muitas cidades. Cidade de muitas vidas cambiantes, coloridas, cinzas ou em tons vibrantes da vontade de sambar, de reclamar, de sorrir e chorar. Cidade boliçosa que dança entre os braços abertos de uma maravilha a velar-lhe os dias e as portas que se fecham aos miseráveis, aqueles que, vindos de outros sonhos (in)felizes de cidade a procuram em busca de abrigo. Esquecidos por nossa senhora de copacabana, tornam-se invisíveis em becos e viela pela madrugada. 

Difícil também não se perder em suas ruas, em seus labirintos; não se encantar com o sorriso dos seus à saída dos cinemas, dos bares, das feiras de muitas cores, dos jardins a contarem histórias centenárias. Difícil não se apaixonar por ela, mesmo que, percorra-nos às veias um amor sempre tenso a nos impulsionar entre o prazer e a dor, a alegria e o medo, entre o real e o imaginário.

Admirável velho mundo de tantas novidades, cidade repartida em mil partes, para a qual, a única metáfora possível para defini-la somente pode se realizar em seu nome: Rio de Janeiro.

Comentários

Rosilene Melo disse…
Admirável texto sobre vivências partilhadas que não cabem no mundo das letras, embora você seja uma excelente tradutora. Parabéns!
Isac disse…
O melhor de tudo isso, além de ainda vier nesta velha-nova cidade, é perceber o quanto nossas memórias e vivências (como bem diz Rosi), apesar de neste texto inevitavelmente filtradas por suas próprias (de Sônia), são efetivamente partilhadas com tamanha intensidade e quase precisão: seria isso algo próximo de um sentido profundo do que superficialmente se chama de comunicação? Certamente o mérito é do texto (e da autora) que consegue nos reunir a todos em suas teias, tecidas com os fios da memória...

P.s.: não tem nada a ver a palavra que tenho que digitar agora (COSPE) para confirmar o depoimento. Ainda se fosse GRITOS, ASSOVIOS, PALMAS, VIVAS!!!, mas COSPE!! Valha-me Deus, essa internt tem cada coisa às vezes...

Beijo Soninha! (será que pode dizer esse tipo de coisa aqui?)
Leticia disse…
Que lindo, Sônia!! Amei seu blog!!
Virei sempre aqui.
bjs

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