PARA ONDE VÃO AS PUTAS TRISTES DE GARCIA?

A ONG Coalizão Regional Contra o Tráfico de Mulheres e Meninas na América Latina e Caribe (CATW-LAC) acaba de anunciar que denunciará Gabriel Garcia Marques por apologia à prostituição e a pedofilia. Tal ação ocorre pela cessão dos direitos do livro “Memória de minhas putas tristes” para ser transformado em filme. Segundo a ONG, com essa atitude Garcia massifica “a mensagem e reivindica poeticamente como natural essa atividade [a prostituição], o que leva à normalização do fenômeno e o faz ser considerado lícito" (¹)

Parece que caminhamos a passos largos para a paranóia coletiva. Um momento em que a humanidade pretende purgar todos os seus pecados através da vigilância implacável sobre o presente que carrega o fardo de ter sido eleito como o tempo de todas as reparações.

Nessa tarefa, toda e qualquer manifestação identificada fora dos padrões desse projeto deve ser reprimida implacavelmente. Contraditoriamente, exatamente quando pensamos ter maior liberdade, deparamo-nos com um momento de vigilância jamais visto. Um controle ilimitado que nos alcança 24 horas do dia e nos segue todos os passos.

O que você está fazendo agora?” Pergunta a última grande febre da internet. Enquanto nos esforçamos em respondê-la a cada hora, vamos submergindo como que em um delírio coletivo que nos arrasta para as profundezas da superficialidade; a tal ponto que sequer questionamos os reais efeitos dessa publicização em nossas vidas. Um mundo em que todos são “bem vindos” desde que estejam em seus lugares e seus guetos e que digam a que minoria, grupo, comunidade, gênero, etnia, classe ou partido pertencem. Um controle que asfixia a criatividade porque se funda a partir da interdição da palavra em uma hipocrisia conformativa que mascara a indiferença. Um mundo que continua de portas fechadas à miséria. “Da obrigação de conhecer uma única cultura (…) passa-se a absolutizar acriticamente as virtudes, só as virtudes, da minoria a que se pertence. Relativismo exacerbado da “ação afirmativa” obscurece os dilemas compartilhados com conjuntos mais amplos”(²)

Mas é preciso punir Garcia! Grande incitador da pedofilia e prostituição, logo ele, que com seu “Cem anos de Solidão’ tanto nos fez pensar sobre a América Latina e também por seu amor por ela.

Ah! Mas quantos ainda precisamos castigar para que sirvam de exemplos para que a fábula do mundo politicamente correto possa se realizar! Se Garcia Marques vai ser denunciado por sua obra, teremos ainda um grande trabalho pela frente. Quem sabe, não possamos produzir um novo índex e animar umas novas fogueiras?! Façamos uma limpeza literária, há muito ainda por purgar! O problema é saber quantos de nós ainda tem paciência para ler mais de 140 caracteres. Dostoievski e seu Raskólnikov, Camus e o incomodo Mersualt, Vladimir Labokov e Lolita, serão bons objetos de expiação, entre tantos outros impossíveis de mencionar aqui.

Toda a sociedade ler o mundo de acordo com as questões postas em seu próprio tempo. No nosso, tempo caleidoscópio das tolerâncias inflexíveis, a obra literária também deve sentar-se no tribunal da história... Por mais incomodo, desconcertante ou constrangedor que possam parecer, esses autores, nos fazem pensar sobre o que somos. Os limites com os quais cada um de nós se depara ao ter contato com umas dessas obras é o que nos situa em relação a outras culturas, formas de comportamento, ou mesmo nos leva ao pensar sobre nos mesmos, sobre o que nos diferencia, aproxima ou afasta de situações que, embora nos sejam propostas em um caráter ficcional, estão carregadas das experiências próprias ao viver humano. Ao se criminalizar Garcia corrobora-se com uma postura de intolerância e, sobretudo, obscurantismo intelectual que tantas vezes já assistimos em outros momentos, embora, erga-se sob outros argumentos é da mesma vontade de calar que parte.

Enquanto isso... seguem tristes as putas de Garcia, vejamos qual o veredicto que as acolherá no futuro.


(2) Cancline, Néstor Garcia. Diferente, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro. UFRJ. 2007

Comentários

Isac disse…
Assino em baixo de tudo que você disse, paranóia generalizada camuflada pela lógica do politicamente correto que se aloja na superfície, criando falsos problemas, muitas vezes até com motivações bem-intencionadas, mas se consumindo em torno do que é falsos, ilusórios...
Amanda Teixeira disse…
O povo dessa ONG deveria ler "A Paixão Terna" do Peter Gay. Ou deveria tirar as meninas da rua em vez de se preocupar com livro do pobre do Gabriel Garcia Marquez. Ou ainda pensar bem no público-alvo do livro e do filme: duvido que essas moças tenham a oportunidade de vê-lo.

Isso me lembrou a associação de cegos americanos "boicotando" o Ensaio sobre a Cegueira do Sramago...

Absurdo... mais absurdo que qualquer realismo Fantástico... mais estranho que uma visita à casa dos Buendía ou um passeio em Macondo.

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