Nunca descansar, Nunca desligar... ou a síndrome de Funes

Recentemente a Globo News fez 14 anos e lançou uma bem produzida campanha de marketing, cujo objetivo foi promover o próprio canal e sua atuação na produção da notícia. Sua a mensagem principal: “nunca descansar, nunca desligar”. Ações atribuídas ao próprio canal, como qualidades no meio em que atuam. Eu acrescentaria uma pergunta. Como agüentar?

Ao assistir a propaganda, imediatamente me senti como Funes, o memorioso de Jorge Luis Borges. Como se naquele momento, também eu tivesse caído do cavalo e batido com a cabeça. Tal como Funes, senti-me castigada a nunca mais poder me distrair do mundo. Condenada a ver, olhar, ouvir, saber, ver, olhar, ouvir... Errante em um ciclo ininterrupto de eventos, notícias, informação, enfim. Como se cada um de nós fôssemos “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso”. Mundo no qual parecemos ter encontrado a fórmula mais sofisticada e complexa de aprisionamento e dependência: a produção ilimitada e irrefletida de informação.

Excesso que tem tornado quase tudo, espetacularmente desimportante, ou fugazmente importante, para ser otimista. O que poderia ser finalmente o ponto máximo de nosso desenvolvimento intelectual tem se tornado, na verdade, um grande pesadelo de Funes.

Sabemos como produzir, mas não sabemos como preservar o que realizamos hoje para as gerações futuras. Temos a capacidade inimaginável de ampliar o conhecimento, mas efetivamente não estamos nos preparando para lidar com essa produção no futuro.

O rápido desenvolvimento da tecnologia não tem deixado espaço para a reflexão consciente sobre nossas descobertas no presente, e como tudo é rapidamente atualizado, o futuro torna-se passado antes mesmo de se firmar como experiência duradoura em nosso presente. Nessa corrida, o esquecimento tem avançado mais velozmente do que nossa capacidade de recordação. Isso ocorre em parte porque progressivamente estamos delegando aos meios, a responsabilidade de perpetuar um patrimônio memorial, cognitivo e cultural que cabia aos grupos humanos administrar em suas relações comunitárias, afetivas e identitárias.

A quimera de que nossos arquivos digitais darão conta de preservar nossos artefatos de recordação, vai-nos lançando rapidamente em um mergulho em Lete, o mitológico rio grego do esquecimento. Conforme chamou atenção Remo Bodei (2004; 15), “o desejo de usufruir imediatamente como dádivas únicas do amor, da amizade, do prazer ou do bem estar” nos colocou em um estado de alerta ininterrupto em espaços nos quais a velocidade, que impõe um presente contínuo, importa mais que a duração. Situação que explica, em parte, o sucesso e a proliferação gigantesca indústria de manuais de auto-ajuda, sites de relacionamentos, conselheiros sentimentais, agências de casamento e de amizades, tão próprios deste tempo.

Todavia, esse é ainda um tempo nosso, e como tal, ainda é possível acordar do sonho de Funes, para isso é preciso lembrar que a memória e o esquecimento nos povoam e são necessários principalmente porque a partir deles significamos nossas experiências subjetivas, sociais e culturais, portanto, é preciso não nos acostumarmos com o excesso que banaliza e cega.

Comentários

Isac disse…
Oi, Soninha, suas reflexões estão a cada dia mais inspiradoras: ao mesmo tempo líricas e sóbrias, mas despidas de qualquer pedantismo. Fale-nos!
Tânia Peixoto disse…
Oi, Soninha!

A sua reflexão é muito pertinente e reflete o sentimento, a percepção de muitos de nós, na atualidade, no tocante a maneira como nos relacionamos com as novas tecnologias da informação e da comunicação e com a fugacidade que lhes é inerente.
Ao mesmo tempo em que somos tomados pelo desejo de "consumir", rapidamente, o que é produzido a cada milésimo de segundo, nos flagramos exaustos com a sobrecarga que nos é imposta cotidianamente, de forma indiscriminada.
Às vezes, dá vontade, simplesmente, de se desconectar...
Parabéns pelo texto, suas palavras me são sempre muito bem-vindas!

Abração!
oi, Sonia querida, fiz outro dia um resmungo no Facebook contra a GloboNews e sua lógica neurótica, incluindo esse slogan do "nunca descansar etc.", e o Isac comentou lá me indicando esse seu texto. Adorei, muito legal mesmo, inclusive a relação com Funes, texto que conheci dando a disciplina de mídia e memória com marialva. Valeu mesmo, parabéns, vou divulgar geral! bjos, Ana Enne.

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