Os aposentados da história e as armadilhas do passado reparado.

Dos muitos absurdos que costumamos escutar diariamente em nome da “história” a divulgação de que algumas pessoas têm direito a aposentadoria por serem descendentes de “heróis” nacionais realmente causa espanto para não dizer constrangimento. Nas últimas décadas parecemos ter entrando em uma quase histeria de reparação do passado. Como se fosse possível o presente expiar todas as culpas das escolhas efetuadas por nossas sociedades ao longo da história.

Em nome disso, um conjunto de políticas públicas têm se organizado tentando “restituir” aos mortos o que lhes foi usurpado, ao menos assim, seus descendentes teriam um pouco de reconhecimento histórico.

Antes que os politicamente corretos avancem sobre mim e os mais radicais digam que sou contra as cotas, as minorias e aos direitos humanos, esclareço que me coloco efetivamente contra a uma idéia que o passado que pode ser reparado, e assim, se tenham resolvidos nossos problemas com a história. Ventilaria por demais nossas consciências!

Muito conveniente pagarmos às gerações atuais pelos seus mortos do passado. Quanto vale em reais os milhões de indígenas dizimados ao longo dos séculos? Ou o trabalho dos povos africanos em mais trezentos anos de escravidão? O passado não volta, simplesmente pelo fato de que ele passou.

Isso evidentemente, não nos impede de fazer uma reflexão crítica sobre ele para que compreendamos melhor quem somos e o que queremos do futuro.

Falo do não esquecimento que é bastante diferente da idéia de reparação.

O não esquecer diz respeito à construção de nossa identidade enquanto membros de uma comunidade afetiva, política e social. Diz respeito ao relembrar, comemorar que significa lembrar juntos.

Remete ao exercício crítico de pensar sobre o nosso passado contribuindo para construir, no presente, horizontes de expectativas diferentes daqueles que nos vinculam às experiências traumáticas, autoritárias e excludentes exercitadas no passado.

Se hoje o Brasil tivesse que reparar sua história, considerando que isso fosse de alguma forma possível, certamente ele deixaria de existir, porque cada uma de nossas características, sejam àquelas que ressaltamos ou as que desprezamos, foi construída na relação conflituosa, diversificada e, muitas vezes violenta, desse amálgama que nos une e identifica.

Penso que se devemos ensinar às gerações atuais a importância do passado é porque isso pode possibilitar, principalmente, compreendermos quem somos no presente. Pois esse é realmente o único tempo que nos pertence e se conseguirmos compreendê-lo de forma crítica e consciente é possível que no futuro não precisemos de políticas ou de aposentadorias feitas em nome do que não pode mais se mudado.

Comentários

Victor Coelho disse…
Concordo contigo, Sônia.

Sempre tive a impressão de que haveria um sentido nas reparações que seria o de uma espécie de "propina" para calar-se sobre a história, já que, à parte o direito dos que as reivindicam, tais reparações se dão por parte do mesmo Estado que promove (sai governo, entra governo) a manutenção de uma tentativa de esquecimento, que vemos no silêncio público e nos constantes recuos quando se tenta debater um maior acesso à nossa história autoritária recente. Pagar pensão para descendente de Tiradentes é bem sintomático desse jogo: o “herói” do passado distante não incomoda mais nem um pouco o presente.
No caso das cotas – que você chegou a mencionar -, embora tenha também o caráter de acelerar o acesso aos descendentes dos marginalizados à universidade (o que é bom, tanto pelo lado simbólico quanto prático), por outro também entra nesse jogo de “reparações” quando vemos que o sistema público de ensino escolar continua precário, prejudicando a maioria. O “compensatório” acaba por servir também ao “embromatório”.

Postagens mais visitadas deste blog

Ruban, a fábula do último homem que o Google não comeu

A Musealização do Presente

Nós também temos nossos Guetos