O direito à eutanásia virtual: a síndrome do eterno presente e o desafio do esquecimento na era Google

Uma matéria de hoje do jornal El País, colocou uma questão importante para pensarmos a interferência da internet, em particular dos buscadores, nos processo de lembrança e esquecimento na contemporaneidade. Intitulado "Un nuevo desafío: el derecho al olvido" a matéria trata do caso da ginasta Marta Bobo, hoje com 45, professora da Facultad de Ciencias del Deporte de la Universidad de A Coruña, ex-atleta olímpica, que em 1984 foi notícia exatamente no El País por, possivelmente, sofrer de anorexia, fato que estaria atrapalhando sua carreira naquele momento. Até aí nada demais, afinal, como uma matéria curta vinculada 26 anos atrás poderia influenciar ou prejudicar uma acadêmica reconhecida em seu meio?

É provável que essa notícia jamais viesse a público, a não ser pela extrema curiosidade de alguém ou pelo acaso de alguma pesquisa sobre práticas esportivas, olimpíadas, etc..., realizada em qualquer das hemoreteca espanholas ou, quem sabe, de outro país que armazene o periódico em seus arquivos.

Era provável que isso ocorresse a não ser por um detalhe: a hemeroteca na qual a notícia em questão está armazenada, não se situa mais em um lugar físico, ou pelo menos, não somente nele.

Fundando em 1976, o jornal El País, a exemplo de outros jornais, caso da Folha de São Paulo no Brasil, disponibiliza todo o seu conteúdo na rede. Através dela, e de buscadores como o Google, o maior de todos, a matéria sobre Marta Bobo, de 1984 pode ser facilmente localizada, bastando para isso que seu nome seja colocado como tema de busca. A ex-atleta argumenta o inconveniente de hoje, na sua atual condição de acadêmica que discute e trabalha exatamente a temática esportiva, ter continuamente seu nome associado a um assunto tão delicado para o meio que é a questão da anorexia. "Una vez leí una referencia a mi supuesta anorexia en Vogue. Pensé que se iría olvidando, pero ahora resulta que la noticia tiene de nuevo repercusión".

O exemplo nos coloca um problema muito próprio do nosso tempo: a atualização permanente da notícia, seu eterno vagar no presente através da rede, o que simplesmente impede seu esquecimento. Talvez até possamos pensar em um novo desafio para o próprio campo da comunicação e a reboque, para a história também, ou seja: o passado que não passa. A novidade, sempre renovada, por mais estranho que essa assertiva possa parecer. Exposta para cada leitor que tem acesso aquela notícia, mesmo antiga, torna-se para ele, que nunca a havia lido, nova.

O jornal se defende afirmando que não pode simplesmente apagar de seus arquivos as notícias dadas, dessa forma, estaria infringindo o direito fundamental da informação, seu argumento então é de que o problema não está na notícia vinculada em1984, mas sim, no fato de agora, ela está acessível a qualquer pessoa em 2011 através da rede.

Deparamos-nos assim com uma questão inquietante: estamos condenados a permanecer na rede mesmo depois de não estarmos mais aqui? Quais os efeitos desse presente contínuo para as gerações futuras? Como ensinar sobre o passado no tempo de uma hipertrofia do presente?

Nas comunidades de relacionamentos virtuais crescem os perfis de pessoas já falecidas que continuam recebendo diariamente mensagens de seus parentes e amigos, como se a própria morte agora pudesse, metaforicamente ser abolida da experiência humana. Vive-se como se o morrer fosse uma passagem deste mundo, para outro; mas não aquele sugerido pelas inúmeras perspectivas religiosas, espera-nos agora o mundo dos bits e bytes.

O que Marta reclama nada mais é, do que um dos mais elementares diretos para qualquer indivíduo: o direito ao esquecimento, aquilo que nos possibilita seguir adiante. É o esquecer que nos ajuda a selecionar e compreender o que é importante ser lembrado e que aprofunda nossa existência numa dimensão temporal da duração, tornando assim, o passado, não uma eterna presença, mas uma experiência reflexiva do viver. Se tudo está permanentemente disponível num eterno presente, corremos o risco de caminharmos para uma espécie neurose coletiva que vê na internet seu desejo de eternidade ilusoriamente realizado.

Crato, 15 de maio de 2011

Sônia Meneses

Matéria do El País:

http://www.elpais.com/articulo/opinion/nuevo/desafio/derecho/olvido/elpepiopi/20110515elpepiopi_4/Tes

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ruban, a fábula do último homem que o Google não comeu

A Musealização do Presente

Nós também temos nossos Guetos